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PRERROGATIVAS DA ADVOCACIA E DIREITOS DO RÉU EM PROCEDIMENTOS PENAIS

     A profissão do advogado é regulada pelo Estatuto da Advocacia, instituído sob a Lei nº 8.906/94, tendo a atuação profissional controle e regulação pela Ordem dos Advogados do Brasil e sendo a prerrogativa do advogado instrumento que garante ao profissional atuação livre, independente e isenta de quaisquer receios na busca dos interesses de seus clientes.

     Evidente que em matéria penal o interesse do constituído converge na busca e manutenção de sua liberdade e de seu estado de inocência – o que, em uma sociedade castigada por altos índices de práticas criminosas, acaba por fazer com que certa parcela da população se insurja contra direitos previstos em Lei e confunda prerrogativa com impunidade.

     Neste cenário é cada vez mais comum ao advogado que encontre situações durante a sua atuação que possam acarretar a flexibilização dos direitos do seu cliente, muitas vezes através da inobservância de prerrogativas profissionais.

     No que diz respeito às prerrogativas, há uma comum confusão em relação ao seu motivo de existir. Pois bem, enquanto alguns possam pensar que as prerrogativas são unicamente uma maneira de facilitar a atuação do advogado, temos que as prerrogativas são, em primeira análise, ferramentas garantidoras que levam à observância de direitos fundamentais daquele que necessita dos serviços profissionais de defesa em matéria penal.

     É o caso de acesso aos autos de procedimentos penais. Ao advogado constituído é garantido o acesso aos autos de todo e qualquer procedimento penal em curso, sendo tal entendimento previsto na Súmula vinculante 14 do Supremo Tribunal Federal.[1]

     A situação acima é bastante comum e quase todo o profissional que atua na área penal já se viu em circunstância como esta, lhe sendo barrado o acesso a procedimento em que seu cliente se encontra na situação de investigado.

     Assim, devemos analisar a situação sob o prisma do motivo principal da existência da prerrogativa profissional: garantir o direito individual do cidadão. Deste modo, percebemos que a negativa de acesso a determinado procedimento, para além de configurar desrespeito à prerrogativa profissional, torna-se barreira impeditiva da consecução de direito constitucionalmente previsto, qual seja, de observância do contraditório e da ampla defesa.

     Tal prerrogativa, embora tenha sido objeto de Súmula Vinculante por parte do Supremo Tribunal Federal, dada a sua importância para a observância dos direitos do cidadão, foi objeto de tipificação penal no corpo da Lei de Abuso de Autoridade - Lei 13.869/2019 -,  como se vê:

 

Art. 32. Negar ao interessado, seu defensor ou advogado acesso aos autos de investigação preliminar, ao termo circunstanciado, ao inquérito ou a qualquer outro procedimento investigatório de infração penal, civil ou administrativa, assim como impedir a obtenção de cópias, ressalvado o acesso a peças relativas a diligências em curso, ou que indiquem a realização de diligências futuras, cujo sigilo seja imprescindível:

Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa. 

 

     Outra situação bastante corriqueira e já conhecida na atuação pelos profissionais da área penal é a comunicação com clientes presos, embora o artigo 7º, inciso III da Lei 8.906/1994 garanta direito de acesso para comunicação pessoal e reservada, ainda que sem procuração ou que se considere o preso incomunicável. Vejamos:

 

Art. 7º São direitos do advogado:

[...]

III - comunicar-se com seus clientes, pessoal e reservadamente, mesmo sem procuração, quando estes se acharem presos, detidos ou recolhidos em estabelecimentos civis ou militares, ainda que considerados  incomunicáveis; 

 

     A leitura deste artigo da Lei 8.906/1994 deixa ainda mais clara a assertiva de que as prerrogativas são reflexos da necessidade de se garantir a observância e respeito dos direitos mais básicos dos cidadãos.

     Resta incontestável que a dificultação de acesso ao constituído e a vedação de acesso a procedimento investigatório impedem completamente o exercício da ampla defesa e do contraditório. Ora, não há ampla defesa sem prévia comunicação com o cliente, assim como não há que se falar em contraditório sem que se tenha acesso ao conteúdo da investigação movida contra este.

     A Lei de Abuso de Autoridade igualmente trouxe tipificação específica para garantir livre acesso a entrevista pessoal e reservada, responsabilizando o agente que promova tal embaraço:

 

Art. 20. Impedir, sem justa causa, a entrevista pessoal e reservada do preso com seu advogado:

Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.

Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem impede o preso, o réu solto ou o investigado de entrevistar-se pessoal e reservadamente com seu advogado ou defensor, por prazo razoável, antes de audiência judicial, e de sentar-se ao seu lado e com ele comunicar-se durante a audiência, salvo no curso de interrogatório ou no caso de audiência realizada por videoconferência.

 

     Como facilmente se percebe, as prerrogativas profissionais em matéria penal não podem ser confundidas com ferramentas de impunidade, devendo seu status ser alçado ao patamar mais elevado dentro da prática da advocacia: a de garantir que a autoridade processante observará os direitos mais básicos do cidadão, impedindo sua flexibilização, sob pena de negar vigência a direito básico do cidadão e, em última instância, ser responsabilizado criminalmente.

     E este é o desafio primeiro dos operadores do direito, especialmente dos advogados e, em última instância, de toda a sociedade: compreender que as prerrogativas do profissional que atua na área penal não são meios de garantir impunidade ou simplesmente de facilitar a atuação profissional, mas são, em primeiro ponto, mecanismos que buscam respaldar e observar as bases axiológicas e fundamentais do Estado Democrático de Direito em que vivemos de forma a permitir que os direitos mais básicos do cidadão processado sejam garantidos.

 

Fonte imagem capa: CANVA


Essa matéria foi escrita pelo redator voluntário:

Fábio Fischer - Advogado criminalista, com ênfase em Tribunal do Júri.

Pós-graduando em Processo Penal pela Unisinos e em Compliance pelo Instituto de Direito Penal Econômico Europeu da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Conselheiro e Presidente da Comissão de Defesa e Assistência das Prerrogativas da Subseção de Igrejinha/RS.


[1]É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa.